Quando Portugal foi um “Paradise”

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O documentário Paraíso revisita o nascimento da música eletrónica em Portugal — uma era de improviso, inocência e energia que moldou toda uma geração.

O título remete a uma frase publicada na extinta revista Muzik, quando um jornalista descreveu o fenómeno das festas portuguesas como “A Paradise Called Portugal” — expressão que acabaria por simbolizar uma fase curta, mas marcante, da cultura clubbing nacional.

Essa projeção internacional deveu-se, em grande parte, a “So Get Up“, dos Underground Sound of Lisbon — uma faixa “lado B” que acabou por ter um sucesso inesperado, como recordam DJ Vibe e Rui da Silva.

O filme está bem construído, sobretudo tendo em conta a dificuldade em reunir imagens de vídeo da época. Nota-se o cuidado em criar uma narrativa coesa com o material disponível- mérito suficiente por si só. É uma boa introdução para quem não viveu esse período e quer perceber como tudo começou.

É particularmente interessante ouvir nomes como Danny Tenaglia, que conta como tocar num castelo em Santa Maria da Feira mudou a sua perceção do DJing — depois de anos habituado a clubs escuros em Nova Iorque. Também Rob Di Stefano transmite um fascínio genuíno pelo que encontrou por cá nessa altura.

Kremlin, Alcântara-Mar e Rocks são os clubs mais destacados em Paraíso — e, de facto, foram o coração de todo o movimento, embora falte a referência aos impressionantes line ups da Locomia, já no final da década de 90.
O testemunho dos Kult of Krameria sobre a faixa que criaram para o encerramento do Alcântara-Mar é outro momento curioso e simbólico do filme. Fala-se também da vitalidade e a excentricidade daquele espaço lisboeta, difícil de repetir hoje, como recordam os “Alcântara-Mar Dancers”.

O documentário capta bem a espontaneidade e a “carolice” que definiram esse início. Nada era planeado, não havia estruturas nem carreiras pensadas. Tudo acontecia de forma orgânica, movido pela curiosidade e pela vontade de fazer.

Ainda assim, há alguma repetição nos protagonistas. Fica a sensação de que o retrato teria ganho com mais vozes — outros organizadores, DJs e figuras que também foram parte da história.
Há também aspetos que podiam ter sido um pouco mais explorados: o papel das lojas de discos como epicentro do movimento; a importância da rádio, com programas como “O Quarto Bairro“; e também da imprensa, com a Dance Club e o Blitz — ou mesmo a Nasa, no Porto — que serviam de elo entre DJs, produtores, promotores e público.

O tema das drogas é tratado apenas de passagem, provavelmente o suficiente para não desviar o foco do essencial.

Três décadas depois, há uma ideia que atravessa vários testemunhos: Portugal esteve perto de consolidar uma verdadeira cena eletrónica, mas deixou escapar essa oportunidade. Cisco, dos The Advent, nota até a estranheza de hoje se verem tão poucos DJs portugueses nos line-ups das festas feitas em Portugal — um contraste gritante com o entusiasmo vivido nos anos 90.

Mais do que um exercício de nostalgia, Paraíso é um lembrete de que aquela energia — natural, caótica e apaixonada — foi o que deu origem a tudo. Um ponto de partida digno, que merece continuidade: talvez uma segunda parte, mais abrangente e plural, para completar o mapa de uma revolução musical feita de improviso e paixão.

“Paraíso” é produzido por João Ervedosa (aka Shcuro) e Maria Guedes (Maria Amor), com realização de Daniel Mota.

texto: Nuno Rodrigues
foto: Silvia Inácio

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By Nuno Rodrigues