Na escatologia Islâmica, Sirât representa uma ponte – mais fina que um cabelo e tão cortante como uma espada, a ser atravessada por todos no Yawm al-Qiyamah ou ‘Dia da Ressureição’ para atingir o Jannah ou ‘Paraíso’.
E é um pouco através dessa viagem que Oliver Laxe (para os confusos lê-se ‘Láche’) nos leva com a sua proposta em Sirât. Através do sentimento eletrizante da luz, da música que habita no éter, e do prana na dança.
O galego-francês Oliver Laxe, formado em cinema em Barcelona, estreou Sirât na 77.ª edição de Cannes e foi galardoado com o Prémio do Júri, ex-aequo com Sound of Falling de Mascha Schilinski.
O filme, concebido entre Espanha e Marrocos, e rodado em Super 16 mm, leva-nos por um percurso espiritual e iminente, na busca de uma filha desaparecida em raves no deserto — e deixa uma impressão profunda. Laxe, já tinha deixado a sua marca em Cannes com os suas três longas anteriores: You All Are Captains (2010), premiado com o FIPRESCI na Quinzena dos Realizadores; Mimosas (2016), vencedor do Grande Prémio da Crítica na Semana da Crítica; e O Que Arde (2019), que venceu o Prémio do Júri na secção Un Certain Regard.

Fazia calor na manhã de sábado em que nos encontrámos. Sem grande cerimónia sentámo-nos e começamos a conversar, sem precedente: Um encontro de mentes.
Estou contente.
Viste a película?
Sim, vi na terça-feira. E confesso que saí dali mesmo (suspiro)… demorei um bocado a processar. E fez-me bem. E ao mesmo tempo, tive muitas sensações. E não consegui bem distinguir o que era o suposto [sentir]… Acho que há um bocado isto, não é? Às vezes há uma interpretação específica para a arte… Os críticos dizem que uma pintura do Picasso tem um significado ou outro… Mas nem sempre é. E por acaso, essa era a minha primeira pergunta. O que esperava que as pessoas levassem consigo?
Que olhassem para dentro. Simplesmente. Há muitos níveis de representação no ser humano: A cabeça, o coração, a pele, as tripas, enfim. Então, uma obra de arte… Pensa-se, sente-se, vive-se, experimenta-se. Mas, sobretudo… Há um espectro de espectadores imenso. Cada um vai fazer a sua própria película. Mas, para mim, era importante olhar para dentro. Independentemente da interpretação.
Eu queria que as imagens, a proporção das imagens… A arte é uma questão de proporções, de geometria. A arquitetura, a música, tudo. Que essas proporções de imagens penetrassem no espectador, remexessem positivamente, espero. É duro, mas é bom. Simplesmente. E, depois, que as imagens façam o seu trabalho.
Ou seja para si até é importante que as pessoas tenham diferentes sensações e interpretem o filme de formas diferentes?
Uma obra de arte tem de superar o autor. Tem de transcender o autor. E eu, como bom galego que sou, o meu objetivo, como artista também, é restituir a ambiguidade no mundo. O mundo é complexo. Pode-se sentir e ver de muitos pontos de vista. Gosto disso. Há um equilíbrio entre o dizer, a energia masculina, o arquétipo masculino, e o evocar, a energia feminina ou a sombra. Entre luz e sombra, entre claridade e escuridão. Então, sim, a película diz coisas, explica coisas, mas sobretudo, o o lado narrativo, o relato é para sentir com mais força as sombras, as imagens. Para que as imagens se penetrem melhor dentro.

Então, para si, o que é um bom filme? É um filme que transcende o autor?
Sim. Porque o autor é o pior inimigo da sua obra. Há um momento em que o autor tem de parar. E tem de confiar no que… Também o autor tem de confiar na vida, nas imagens, no espectador. Há um ponto em que não tem de colocar… Sobretudo as imagens, não têm de ser todas de demasiada utilidade. Não têm de ser sempre empregadas com um fim: Narrativo, discursivo… Não, às vezes, há que deixar as imagens… sobretudo se São todas imagens do início do processo criativo, que estão muito conectadas com o seu inconsciente e com o inconsciente coletivo. Todas as imagens, todas as ideias artísticas. Então, trata-se de proteger essa fragilidade até o final do processo. Processo de escritura, pré-produção, rodagem. Que essas imagens cheguem puras à película. Para que tenham todas as capas de significação. Todas as capas, não de significação. Todas as capas de… De pregnância, de comunicação.
Então, eu senti muito, especialmente na cena do deserto, em ser está a processar uma morte. Senti que a música, especialmente a rave em si passa a ser uma forma de expressão espiritual, ou uma forma de processar as emoções. Um bocadinho, se calhar, como o Ecstatic Dance, ou algo do género. É isso que… É isso que se deseja? É isso que é suposto? Será que a música é uma expressão espiritual? Será que a morte é possível expressar-se?
É possível?
Expressar-se. De uma forma… Ou seja, expansiva, em vez de ser…
Celebrativa.
Exatamente, porque sei que falou muito sobre o facto do filme ser um confronto com a morte também.
Cerimónia.
Ou seja, de que forma é que a morte se pode abordar de uma forma não negativa, ou até transcendental?
Sim, estou de acordo com o que disse. A música é um arte que penetra diretamente no ser humano, sem passar pelo cognitivo, sem passar pelo lado mais racional do cérebro.

Queria perceber, foi essa a sua intenção? Usar a música como meio? Ou foi simplesmente uma consequência?
Não, eu tinha muito claro a proposta sonora desde o início. Eu, primeiro, escrevi o guião dançando em dance floors, de raves. As imagens já vinham com música, com música eletrónica. Muitos tipos diferentes de música eletrónica. Logo tive que escolher. Estivem muitas festas trance, estive depois, em muitas de techno, mais ambient, mais depende… No final, escolhi mais o techno por diferentes motivos. Quando eu escrevo, já coloco links de músicas, referências para cada sequência. Porque, muitas vezes, compro os direitos dessas músicas.
Primeiro, as imagens: Sim, nasceram muito juntas. Eu sou um cineasta de imagens, sobretudo. Crio com as imagens, paisagens, mas são paisagens, são texturas que são muito cinestésicas e sonoras. É como uma bruma. Podes imaginar uma bruma?
Bruma, não sei se…
Uma bruma é como as nuvens.
Ah, sim.
Como algo quando há…
Um nevoeiro? Tempestade?
Sim, não consegues imaginar sem som.
Ah, certo. Não claro que não.
Ou uma tormenta [tempestade] de areia no deserto. É difícil imaginar sem som, sabes? Está ligado, muito. E a música eletrónica tem algo transcendental. Por vezes às crê-se que não. Crê-se que o sagrado está mais vinculado com a música clássica. E crê-se que a música eletrónica é mais mundana. Mais ligeira, superficial. Mas não estou totalmente de acordo, porque o facto de que a música eletrónica não provém de nenhum instrumento, de corda, de percussão, não provém do corpo ou da voz, dá uma abstração interessante para trabalhar o meu objetivo, que é… O meu objetivo como artista é fazer sentir o espectador, a vibração, ou a textura que há atrás do mundo material. Por detrás do mundo material há um mundo subtil que vibra, que está pensando, que está manifestando. Então, a música eletrónica, como é muito abstrata, não tem…
Qual é a origem da música eletrónica, de um som eletrónico? É difícil de saber. É um sinte [synth], mas é vibração. No final de contas é uma vibração. Como tudo, tudo é vibração. Então, digamos que a música eletrónica permitia evocar este som original deste mundo subtil, ou mundo espiritual, ou transcendental, ou como quiser chamá-lo. Nós, trabalhando com Kanding Ray, o nosso objetivo era tentemos pensar, ou tentemos evocar como soa o universo. Como soa o deserto? O que há por detrás do deserto? Essa inteligência criativa que há por detrás do deserto. Esse deus, esse… O que seja. E esse era um pouco o objetivo desta música eletrónica, que no começo é muito tribal. O beat é muito terreno, mas pouco a pouco, a música vai atingindo a algo mais transcendental, e mais etéreo, mais…
Etéreo, precisamente. Por acaso, é muito interessante, porque era precisamente a minha próxima questão: a música eletrónica é uma coisa que não é humana, no sentido em que nós criamos os instrumentos e produzimos sons a partir daí. A música eletrónica é uma coisa muito sintética.
E fria, para muita gente é fria.
Exato. E como é que se cria essa ligação? Apesar de ser sintética, somos nós que conjugamos esses sons e somos nós que os fazemos ter harmonia, com o que sentimos e com o nosso ambiente. Interessante. Mas, sim. Tenho que ver as minhas cábulas.
As tuas quê? Cábulas. Ah, cábulas.
Um à parte — Parecendo ou não, a (não) barreira linguística aproximou mais o encontro de significados, do que talvez se tivéssemos os mesmos pré-conceitos estabelecidos desde o início. Por vezes a conversa a ter-se fala mais alto que o conteúdo objectivo, ou by the book, se me faço entender — Voltando:
As imagens foram criadas primeiro, apesar da música ter imensa preponderância sobre…
Já no guião. No guião havia já… Estás no guião e há um link a um tema musical e depois continuas a ler e no próprio guião escreves pára a música. Faço isso muito, não é? Para manter o espectador no mood.
Exato, e é tal coisa de parar a música abruptamente…
Sou contra o fade-out. Odeio o fade-out na música. Na imagem, sim, gosto também do fade, porque dá um lado mais… Febril, febre?
Sim. Febril.
Febre, mais de… Nevoeiro, disseste?
Sim, sim, sim.
Mas o som, gosto de respeitá-lo. O fade-out é uma falta de respeito à música.
Sim, de certa forma. Sinto que este tipo de filmes nos faz questionar um bocadinho a sociedade e é um bocado uma esperança para um dia uma evolução da consciência global. Seria ideal, não é? Vemos um bom filme e ficamos… A partir de agora o mundo vai mudar…
Sentiste isso?
Sim, senti.
Sentiste-se o optimismo?
Sim.
Que bem, alegro-me.
Não no momento, confesso. No momento fiquei um bocado frustrada quase. Porque é que… Porquê, porquê, porquê? E, aliás, foi… Era a primeira pergunta que eu queria fazer. Porquê? Não, é? Porquê.
É o que fazemos os seres humanos toda a vida. Porquê? Porquê todo o rato? [a toda a hora].
É, é, é. Mas de que forma é que… A Rave ou a arte é uma ferramenta para nós, para a cura? Ou seja, como é que… Como é que a Rave é um meio espiritual?
Eu creio que… A ver, há que admitir primeiro que a Rave pode ter um lado, uma dimensão um pouco tóxica.
Claro.
Há que admiti-lo. Mas, na sua essência, creio que a Rave é uma reprodução de um hábito, um gesto que fazia o ser humano durante milhares e milhares e milhares de anos. Que é simplesmente rezar, orar com o teu corpo. É purgar o teu corpo, transformar a energia do teu corpo. Purgar as pantasmas. Pantasmas?
Sim, fantasmas.
Purgar os fantasmas. Purgar. Relacionar-te com a tua ferida. Com a tua ferida primordial. É [tirar] sacar dor. Sacar dor. Sacar a dor. A dor ancestral. Familiar. De cada… das tuas linhagens. É estar aí, e que saia. Que saia a dor. Então, efectivamente, parece-me que não é… Ou seja, é algo… é algo muito imanente e trascendente ao mesmo tempo. Muito imanente, algo muito… Dizes, é espiritual. Sim, mas é espiritual, porque também é muito terreno. É um equilíbrio perfeito entre terra e céu. Não é abstracto ou gratuito. Há algo físico. Ou seja, é o corpo e a alma. Que dançam juntos. E depois… Acredito que… Esta dimensão da ferida, que está muito na cultura techno, rave techno, traveller. Não falo dos festivais, em que há mais a cultura da pose.
Sim, sim, sim.
Isso não me interessa tanto. Mas a cultura mais punk, rave. A cultura mais free party.
Mais autónoma e familiar.
A ferida está aí. É importante a ferida. E creio que é sano. É como… É gente que a vida humildou. Humildar, dizes em português? Entendes?
Sim, entendo.
Tornar humilde. E é disso que fala o filme. De como a vida, de maneira perfeita, tem um mecanismo que te empurra ao abismo, para que cresças. Que te empurra ao abismo, para que cresças, para que te olhes para dentro. E dura às vezes a vida. Porque não fazemos bem o trabalho. Como não fazemos bem o trabalho…
E volta, e volta até aprendermos.
Exato. Então… Gosto dessa dimensão da ferida, que é uma dimensão na que todos os seres humanos estamos. Todos estamos feridos. Todos. Mas eles sabem-no. Bom, não queremos fazer muito spoiler, mas nesse último trem da película, ou nesse trem que é a humanidade, não há… Na dimensão da ferida, estamos todos no mesmo plano.
E isso vai-nos fazer correr mais forte as mãos. Por isso é melhor… Ficar com bom sabor, afinal. Com optimismo. Para mim, esse trem de Sirât, passa dentro de mim ao pescoço. Vejo, sinto serenidade dentro do trem.
Sim. Acho que leva ao seu tempo. Eu vi o filme há uns dias, e agora já me sinto de outra forma.
Não sei se me escutaste falar… Falei de massagem, muito. Que é como um massagem que dói, no início. Porque pressiona um ponto… É como… É duro. Essa película [filme] é dura. É como dura porque pega no ponto… E no primeiro dia queres matar o massagista. Mas a massagem, depois, faz-te sentir melhor. Faz efeito. Eu confio nas imagens, e confio no espectador, muito. Sei que… Ou seja, a dor de Sirat, o processo pelo qual faço passar o espectador, é a melhor maneira que eu encontrei de cuidar do espectador. Acredito que a intenção, não tenho dúvida que a intenção era boa. Eu acredito que às vezes tem de passar pela angústia para deixar de ter a angústia. É importante.
Obrigada.
Obrigado.
Filme em exibição nos ciemas